Justiça restaurativa: um caminho possível pós-violência contra a mulher 19/10/2022 - 15:23

É possível deixar de ser violento? Na visão da justiça restaurativa, o caminho não é só possível como necessário para a implementação de uma cultura em que os conflitos sejam resolvidos na base da reflexão e do diálogo. O sistema de justiça restaurativa, ainda novo no país, vem sendo adotado há sete anos em casos de violência contra a mulher pelo Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da 1ª Vara Criminal de Ponta Grossa e está rendendo frutos.

A juíza de direito da 1ª Vara Criminal de Ponta Grossa, coordenadora do Cejusc e coordenadora do Comitê Estadual de Justiça Restaurativa do Paraná, Laryssa Angélica Copack Muniz, explica que o sistema tem como foco prevenir a retomada da violência.

“Hoje, cerca de 70% dos atendimentos da Polícia Militar de Ponta Grossa são de violência doméstica. Agressores têm sido presos, mas o que vimos é que a sentença não atende nem a Justiça nem os punitivistas por serem penas baixas, de meses. Se o homem não passar por uma reflexão, provavelmente ele irá replicar a violência em um novo relacionamento”, diz a juíza.

Segundo a Cartilha do Conselho Nacional de Justiça, a Justiça Restaurativa traz, como objetivo principal, a mudança dos paradigmas de convívio entre as pessoas, para construir uma sociedade em que cada qual sinta-se igualmente responsável pelas mudanças e pela paz, ou seja, instituindo a ideia da corresponsabilidade, para deixar de lado o pensamento de que um tem poder sobre o outro, causa essa de tanta insatisfação e, por conseguinte, de violência.

Em resumo, a Justiça Restaurativa resgata o justo e o ético nas relações, nas instituições e na sociedade. Dessa forma, para além de remediar o ato de transgressão, a Justiça Restaurativa busca, também, prevenir e evitar que a violência nasça ou se repita. Assim, não se resume a um procedimento especial voltado a resolver os conflitos, apesar de compreender uma série  deles.

Quatro projetos são desenvolvidos pelo Cejusc em Ponta Grossa, na Região dos Campos Gerais. O público-alvo envolve mulheres vítimas de violência, ofensores e familiares dentro da dinâmica do conflito. Pelos resultados, a magistrada acredita na transformação.

“Percebemos resultados positivos quando as vítimas prosseguem a vida, apesar do que ocorreu. A comunidade também é afetada com a mudança do ofensor, porque ele sai com outro tipo de comportamento e isso impacta nos círculos sociais. Não é simples, nem rápido, mas restaurador”, acredita Laryssa.

 

MÉTODO - Para transformar uma realidade violenta em pacífica, a justiça restaurativa atua em várias frentes. A primeira delas é atender as necessidades da vítima pós-violência, principalmente na reparação do dano, uma vez que a violação prejudica o bem-estar social e psicológico da mulher. Na outra ponta, o sistema atua na responsabilização do ofensor. 

O primeiro projeto - Circulando Relacionamentos - promove o encontro entre vítimas e ofensores para abertura do diálogo. Em um ambiente mediado por técnicos da área da assistência social e psicologia, o casal tem a possibilidade de retomar a conversa para resolver sobre finanças, guarda dos filhos, etc. 

Em todos os projetos da justiça restaurativa a adesão é opcional a todos os envolvidos. Esse é um princípio do sistema, em que a transformação ocorre a partir da decisão individual voluntária. Entre abril de 2015 e setembro deste ano, o Circulando Relacionamentos recebeu 388 casos de conflitos envolvendo violência doméstica e familiar, sendo que em 34% (133) dos casos houve adesão ao procedimento circular restaurativo.

Com o foco na responsabilização dos autores de violência doméstica e familiar postos em liberdade após audiência de custódia, o projeto Central de Reflexão promove cinco oficinas, que utilizam a metodologia do círculo de construção de paz. De maio de 2017 a setembro de 2022, o projeto recebeu 385 homens, sendo que 55% deles aceitaram participar das oficinas.

 

TRANSFORMAÇÃO - Renato*, 50, foi um dos 213 homens que passou pela Central de Reflexão. Em 2019, ele se desentendeu com a enteada de 20 anos, e agrediu fisicamente a jovem. A motivação foi uma questão financeira. Ao contar o que ocorreu, o funileiro automotivo afirmou que o conflito abalou a relação familiar, mas ao mesmo tempo lhe deu uma oportunidade.

“Eu era muito explosivo, comigo não tinha diálogo. Se a gente sentasse e conversasse não tinha acontecido nada. Eu participei de cinco oficinas, aprendi muito sobre a carga do machismo na sociedade e como a gente foi criado de forma errônea”, avalia. Renato continua morando na casa da frente à residência em que moram a enteada, o genro e os dois netos. Com a harmonia familiar restabelecida ele se considera outra pessoa.

“A cabeça da gente muda totalmente. Esse programa deveria se estender. Imagine quanta violência poderia ser evitada. Inclusive eu presenciei uma situação depois com meu pai de 76 anos em que ele humilhou a minha mãe na minha frente por causa de uma tomada. Como eu tive a oportunidade de aprender, eu falei para ele ter respeito por ela”, conta o funileiro. Conversa semelhante Renato teve com o filho de 21 anos, que às vezes é explosivo com a esposa. “Eu vivo aconselhando ele”, afirma.

 

DEMANDA - Chefe do departamento de Políticas para Mulheres da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho, Walquiria Onete Gomes, apoia a justiça restaurativa. Ela afirma que essa é uma grande demanda das vítimas. “Temos a ciência de que o homem precisa ser acompanhado, porque muitas vezes nem sabem que aquilo é uma violência e o quanto impacta na vida da mulher”. Iniciativas já são discutidas para extensão desses projetos pelo governo estadual.

Em Ponta Grossa, o Cejusc ainda desenvolve o projeto Elos, voltado aos homens condenados em regime aberto por violência doméstica. No momento da sentença, o ofensor tem a chance de optar em participar do projeto, que dura três meses, ou cumprir a pena. Em encontros semanais, os participantes integram círculos de discussão com outros ofensores e facilitadores para compreender as motivações sociais, culturais e políticas da violência de gênero. De maio de 2021 a setembro de 2022, o projeto recebeu 85 homens, sendo que 82% aceitaram participar dos encontros.

O quarto projeto da justiça restaurativa - Eu com verso - oferece apoio psicológico a vítimas de crimes com o objetivo de auxiliá-las a transpor a dor e o sofrimento causados pela violência. De janeiro a setembro de 2022, o projeto recebeu 146 mulheres, sendo que 54% aceitaram receber o serviço.

 

Por Amanda Alves