As mulheres paranaenses têm muito o que contar 01/11/2021 - 12:51

Marilia escreve desde que era adolescente. Transcrevia seus pensamentos, tudo o que via, percebia e sentia para o papel. A necessidade de verbalizar suas vivências em poemas tomava conta da jovem escritora. Mas, na verdade, é um erro colocar esses verbos no tempo passado, já que, nos dias de hoje, ela continua escrevendo sobre o que vive e presencia, fazendo com que a paixão pela escrita se transforme em seu trabalho.

A pessoa sobre a qual falamos é a poeta paranaense Marilia Kubota. Ela nasceu em 1964, na cidade portuária de Paranaguá e reside atualmente em Curitiba. Só que, antes de se dedicar, prioritariamente, à literatura, cursou Comunicação Social, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e se tornou jornalista. Depois, obteve o título de mestre em Estudos Literários, pela mesma universidade.

Esse foi só um breve panorama biográfico de Marilia. Entretanto, o que mais convém aqui é tratar de sua trajetória na literatura. Então, vamos em frente… A autora só começou a publicar seus escritos em livros no ano de 2008 e, desde então, passou a se entregar, de fato, à literatura. Ela já havia os publicado em algumas revistas e jornais locais, mas ainda não tinha a coragem de reunir os poemas escritos, há um bom tempo, em livro. O primeiro foi “Selva de sentidos” (2008). 

No início, Marilia praticava a metapoética, ou seja, fazia poemas sobre o próprio ato de escrever poemas. E sua formação como jornalista a influenciou a trazer aspectos sociais para dentro do conteúdo de suas obras. Mas, com o avanço de suas publicações, Marilia se aproximou de temáticas que envolvem questões de identidade, relacionadas à mulher e à sua descendência asiática.

O Paraná é um dos estados do Brasil com maior concentração de nipo-brasileiros. No entanto, mesmo que essas pessoas sejam nascidas no país, muitas vezes, são vistas com outros olhos. Só pelo fato de terem descendência japonesa, há quem pressuponha (de modo estereotipado) que, por exemplo, elas saibam falar em japonês, usam as vestimentas tradicionais do Japão, sejam melhores em Matemática, ou, no caso da Marilia, escrevam haikais (poemas curtos de origem japonesa). 

Apesar de também já ter escrito alguns haikais, Marilia salienta que sua origem nipo-brasileira não implica, necessariamente, em escolhas relacionadas à cultura japonesa no modo de fazer seus textos. A sua liberdade poética é que dá o tom dos temas, recursos estéticos e opções ideológicas. Marilia escreve e quer escrever sobre tudo. Seu livro de crônicas “Eu também sou brasileira” (2020) é exemplo disso: ela afirma aí a sua nacionalidade brasileira e ressalta aspectos identitários que apontam para seu desejo de pertencimento ao país em que nasceu. 

Enfim, Marilia já publicou diversas obras e, talvez, a coragem que ela precisava para começar a expor seu trabalho e assumir seu lugar de escritora no campo literário brasileiro veio do desejo de se expressar livremente, de dar visibilidade à sua visão de mundo, de marcar seu lugar de fala. “É importante que seja dado encorajamento para que mais mulheres escrevam e revelem suas perspectivas, suas visões como protagonistas de si mesmas, sem amarras, tendo em vista a pormenorização dada a elas nessa sociedade de base patriarcal.” manifesta a poeta. 

São histórias como essa que nos levam diretamente para o trabalho que a professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Lúcia Osana Zolin, faz como coordenadora do projeto “Centro de Documentação Virtual de Literatura de Autoria Feminina Paranaense e Pesquisas Relacionadas”. 

O caminho para chegar até o Centro de Documentação começou em 2007, quando Lúcia propôs ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) um primeiro projeto intitulado “A literatura de autoria feminina no Paraná”. Esse foi aprovado e o grupo de pesquisa da professora, chamado Literatura de Autoria Feminina Brasileira (Lafeb), catalogou cerca de duas centenas de escritoras e mais de 600 obras publicadas por elas. Desde o início, muitos alunos da UEM vêm integrando o projeto, desde os da iniciação científica até os de mestrado e doutorado, assim como egressos da pós-graduação. Já integraram, também, colegas da professora de outras instituições estaduais do Paraná como UEL, UEPG e Unicentro.  

Em 2010, a professora deu continuidade à exploração da arte literária paranaense de mulheres propondo um novo projeto nomeado “A Personagem na Literatura de Autoria Feminina Paranaense Contemporânea”. Dessa vez, o empenho estava em conhecer o perfil das personagens representadas em algumas obras publicadas, a partir dos anos 1970, por editoras comerciais ou por meio de órgãos públicos, como a Secretaria de Estado da Cultura (SEEC), de modo a resgatá-las da invisibilidade, mapeando, contabilizando e, consequentemente, abrindo novas frentes de pesquisa. 

O projeto queria responder questões como: quem são as escritoras paranaenses? Quais personagens representam? Quais as constantes implícitas à construção? Em que termos representam o contexto de onde emergem? As escolhas feitas para a composição de seus perfis são inclusivas? E a personagem feminina? Que lugar ocupa nessas páginas literárias?

Com o lema “conhecer para divulgar”, dois anos mais tarde, agora com posse de um vasto material, era necessário tornar público tudo o que o grupo tinha pesquisado e mapeado. “Propomos à Fundação Araucária o projeto ‘Centro de Documentação Virtual de Literatura de Autoria Feminina Paranaense e pesquisas relacionadas’, que visava possibilitar a disponibilização desse material na web”, explica Lúcia Zolin.   

Quando o assunto são as Letras no Paraná, logo são lembrados nomes como Emiliano Perneta, Paulo Leminski, Valêncio Xavier, Dalton Trevisan, entre muitos outros. Notou algo em comum entre eles? Sim, todos os citados são homens. Nos resta saber por que autoras como Júlia da Costa, Helena Kolody, Adélia Woellner, Bebeti do Amaral Gurgel, Luci Collin e tantas outras, apesar de contarem com publicações, prêmios, homenagens e muita relevância, não são lembradas como os autoras? Ou mesmo não veem seus textos circularem em âmbito nacional?

A própria estrutura do campo literário brasileiro pode ajudar a responder a essas perguntas. Ela foi constituída no decorrer das primeiras décadas do século passado e está arranjada, não apenas em competências de classificação e legitimação literárias e artísticas, mas por meio da imprensa, do mercado editorial, das revistas culturais, das academias literárias, mas, de modo particular, na dependência em relação ao Estado. Quer dizer, até por volta de 1930, os autores estavam concentrados no sudeste do Brasil, assim como nós podemos notar hoje com a centralização das produções no eixo Rio de Janeiro x São Paulo. Além dessa questão geográfica, a teia de relações estabelecidas entre os grandes escritores da época como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, líderes do movimento modernista, e do outro lado, Monteiro Lobato e seus aliados, se mostrava muito influente para introduzir um autor ou uma obra em uma posição de importância no campo literário brasileiro.

“Certamente, a literatura de autoria feminina não consistia no objeto primordial desses embates. Até porque é, no Brasil, uma realidade relativamente recente e tardia em relação a certos países estrangeiros: só a partir de meados do século XIX é que podemos falar no tímido início de uma tradição literária de mulheres por aqui, que só vai deslanchar a partir dos anos 1960, na esteira das publicações de Clarice Lispector. Também o feminismo, movimento político e ideológico tomado como o seu grande impulsionador, chega tardiamente ao Brasil, em função dos entraves da ditadura militar. Sendo assim, desde os seus primórdios, essa produção não foi positivamente sancionada pelas referidas instâncias de legitimação literária”, explica a professora Lúcia. 

De modo especial, o Paraná, sendo um estado com características tradicionais e considerado marginal em relação aos grandes centros culturais do país, acaba por ter potencializadas as dificuldades da consolidação da tradição literária de escritoras locais.

Instigada pela pergunta acerca de quem são as escritoras paranaenses, a equipe do projeto de pesquisa “A literatura de Autoria Feminina no Paraná” vem mapeando essa produção. O resultado inicial é o Centro de Documentação de Literatura de Autoria Feminina Paranaense, que existe, hoje, na UEM .

O Centro é um espaço de divulgação da produção literária de escritoras paranaenses, bem como fonte e estímulo de pesquisas acerca dessa produção literária, em certa medida, ausente do cenário da história da literatura brasileira. Está sempre em processo de construção. “A nós importa, sobretudo, dar visibilidade às escritoras paranaenses, invisibilizadas na História da Literatura Brasileira e excluídas do campo literário nacional”, afirma Zolin. 

O site foi construído a partir das informações obtidas por meio de pesquisa de campo (livrarias, bibliotecas, academias de Letras, centros culturais etc). No total, estão catalogadas e publicadas no site 196 escritoras nascidas e/ou radicadas no Paraná; 662 obras literárias (romances, coletâneas de poemas, contos e crônicas); além de 216 antologias em que estão publicadas poesias, contos e crônicas de autoras paranaenses. Há, ainda, diversos trabalhos acadêmicos sobre esse grupo de escritoras. A poeta Bárbara Lia, uma das autoras catalogadas no Centro de Documentação, fala no áudio abaixo suas primeiras impressões ao acessar o site, a importância do projeto e a honra de participar dele:

“Em termos mais objetivos, considero o projeto relevante para o desenvolvimento da área de Estudos Literários no Paraná e no Brasil, porque contribui para com o desenvolvimento das pesquisas relacionadas aos estudos de gênero no Brasil; ajuda a consolidar os estudos sobre a literatura de autoria feminina brasileira, com especial atenção àquela produzida no Estado do Paraná, ao mesmo tempo em que divulga a literatura de autoria feminina paranaense. Também conseguimos ampliar o desenvolvimento das pesquisas desenvolvidas no âmbito do feminismo crítico no Brasil; divulgar de modo acessível, assimilável e solidário os resultados de pesquisas relacionadas ao tema por meio da internet e promover valores de cidadania, como a igualdade de direitos entre os gêneros, subjacente aos estudos relacionados ao tema ‘mulher e literatura”, diz a professora da UEM. 

No que se refere às expectativas para o futuro do Centro de Documentação, a professora Lúcia Zolin conta que formalizou, junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PPG/UEM), um novo projeto de pesquisa que contempla a atualização do site. “Passados quatro anos, é chegada a hora de promover a atualização e revitalização do site, tendo em vista a intensa atuação das escritoras paranaenses no campo literário e, consequentemente, as demandas da comunidade acadêmica, e para além dela, ao acesso a essa produção”, destaca a docente. 

Por fim, Marilia Kubota, citada no início do texto, evidencia o importante papel do Centro de Documentação não só para dar visibilidade às autoras paranaenses, mas também para reunir as próprias escritoras que, com o projeto, podem estar se conhecendo e dialogando. “As mulheres agora estão se encorajando e escrevendo mais, e quando você participa de um grupo acaba que uma encoraja a outra, então existe essa força de se mobilizar.”, afirma a escritora.

FONTE: www.conexaociencia.com.br